INTRODUÇÃO
O texto presente tem a natureza de comentário filosófico livre, sem qualquer preocupação a priori com o uso de recursos técnico-filosóficos típicos nem mesmo com colheita de bibliografias. A sua elaboração foi realizada em razão de discussão acadêmica sobre o pensamento político do homem antigo e do homem moderno e a transição que marcou o paradoxo das duas concepções de valores e compreensões distintas (mas não totalmente díspares), cada qual a serviço da contingência mundana da época.
Essa transição do antigo para o moderno realça pontos cruciais que definiram a teoria jurídica moderna e, até mesmo, o pensamento da comunidade teórica e técnica-jurídica brasileira, como herdeira do civil law romano-germânico – sobretudo no que condiz à salvaguarda das primeiras necessidades humanas, as quais se consagraram bens pétreos em todo ocidente, como a vida, a liberdade e a propriedade.
A temática explorada não traz clara e evidente a correlação entre esta transição e a teoria jurídica – intenção esta proposital. Versa o texto sobre o contexto geral da transição do antigo para o moderno cabendo ao intérprete, leitor jurídico – interessado – refletir sobre sua própria conclusão, tanto que o texto finaliza-se com uma interrogação.
Ora, o ato de filosofar sintetiza-se na terminologia grega SKEPSIS, em tradução, especular, que é analisar, refletir e criticar. Funções estas incumbidas ao leitor não ao escritor.
Ao escritor cabe ofertar sua visão sobre o objeto a ser observado. Ao leitor cabe definir seus valores e suas conclusões sobre esse mesmo objeto e, quiçá, transmitir estas "conclusões" a um outro, que cumprirá o mesmo iter daquele que transmitiu àquelas "conclusões" – conclusões entre aspas porque não são verdadeiras conclusões (a não ser sob o aspecto formal, isto é, resultado lógico das premissas que são objeto de observação) mas apenas mais um ponto de partida, mais uma etapa para o alcance do conhecimento. Daí o título de "prolusão para a teoria jurídica", ou seja, prefácio, apriorística para a compreensão da teoria jurídica, principalmente acerca dos valores vida, liberdade e propriedade.
Esse processo de desenvolver modos de conhecer esmera-se em ser o próprio ato de filosofar; trata-se do ato de exortar a capacidade de raciocinar pela discussão, a qual dialoga para o fim de desenvolver o raciocínio de transmitir modos de conhecer e, assim, cumprir a didática do aprender e do ensinar, do educar, por teorias que outros homens de outrora já fizeram especular e que outros hoje especulam, e outros futuramente, assim o farão, sempre e sucessivamente. O círculo do "modo de conhecer" - saber investigar (analisar, refletir e criticar) para teorizar (formar conclusões gerais e abstratas) e transmitir este mesmo modo - não deve mas também não pode cessar: o homem é um ser pensante em potencial, o busílis é quais ferramentas e quais pretensões se utiliza para este fim.
DO CONTEÚDO DO TEXTO
O universo da convivência ética do homem é definido, em sua essência e formas de representação, segundo a condição do pensamento político e econômico próprio da época em que este interage, consoante ao como este constrói sua moralidade enquanto ser individual e coletivo.
No mundo antigo o ser do homem estava atrelado a reta razão despertada pelo atribuído logos (1), que no exercício da contingência, o viabilizava ao hábito de praticar escolhas prudentes e justas, as quais tendo por finalidade o alcance de um ideal coletivo, o bem comum – reforçaria a auto-conservação e reprodução da polis, e logo, da felicidade individual, simples conseqüente. Em termos sintéticos, a finalidade da vida humana era a busca de uma disposição de caráter que fosse capaz de lidar com as paixões diante da superveniência de casos concretos imprevistos e imprevisíveis.
Na base da convivência antiga, a política era tomada como a arquitetura, a infraestrutura que permitia ao homem praticar atitudes prudentes para o vislumbre da virtude desejada. A ética estava inextricavelmente atrelada à política, pois que o pressuposto diretor desta era aquele que apontava a associação humana em comunidades políticas, como algo teleologicamente natural. Sob outros termos, numa acepção teorética aristotélica, graças ao atributo do Logos o homem cumpre a finalidade de desenvolver relações lingüísticas, as quais fundamentadas no cumprimento de interesses e desejos recôndidos no humano, faz com que eles se solidarizem, a partir da convivência política.
Isto posto, a filosofia política clássica, sobretudo interpretada pelo sistema teórico aristotélico – comporta que a finalidade da política é um preceito oriundo da natureza humana, distinguível pelo logos, em cumprir a excelência virtuosa, através de opções e escolhas que permitam o bem comum e o individual. A vocação humana é zoon politikön; a política é uma decorrência espontânea e imanente da espécie humana.
Em reverso, a filosofia política moderna focaliza o ser do homem e seu agir a partir da instabilidade e lutas dadas na convivência da experiência humana. Se para os antigos, a política era oriunda da natureza humana, nos modernos, será um artifício criado para evitar que o mal individual e coletivo se sobreponha ao preceito da garantia tríplice, da vida, da propriedade e liberdade individual. A finalidade da política moderna é traçar o mínimo de calculabilidade que traga um patamar tolerável à proliferação de litígios insidiosos à paz comum.
Como distinção básica, a lógica da racionalidade antiga toma como substancial que o conhecimento humano, guiado pelo logos é capaz de trazer bem-estar aos homens, pois que sendo animais políticos, a organicidade da polis fará com que estes cumpram a vocação à excelência. A política é despertada do íntimo para o externo, por meio de hábitos virtuosos à satisfação de todos integrantes. Já, a lógica da racionalidade moderna, toma a essência humana como obcecada a vanglória da imposição do poder e aquisição de bens, numa competitividade ilimitada e selvagem, configurante da instabilidade geral. Fator que exige o controle externo de um poder capaz de dirimir tais conflitos, sob a crença de que ao homem individual, tal correção, é despropositada – daí a coação e coerção jurídicas.
Em acréscimo, os homens, na filosofia política moderna, não são seres que se agregam para compartilhar uma existência justa e feliz, mas que se relacionam visando imperar seu poder um em relação aos outros. A convivência humana assim, não busca o supremo bem, mas o exitar do supremo mal, a aglutinação feroz de uns em relação aos outros, a partir do controle racional externo, um artifício coercitivo.
A expressão precursora no renascimento, rompimento com o ideal da política clássica, se dá com Maquiavel, quando rechaça a moral cristã como fundamento e finalidade da política, teorizando a construção de uma "moral própria" da natureza "passional" humana aplicada ao "como"manter a unidade e logro de um "poder externo" que preveja e conserve os homens em certa direção, evitando o supremo mal da aglutinação irracional de uns contra outros; vale frisar que, a preocupação deste teórico é traçar a maneira de exercer um poder, e não, como nos antigos, traçar o "como" para a melhor convivência humana. Em Maquiavel, a virtude é como dominar a fortuna (o acaso humano), e não se enfoca em cada homem particular, mas no ardil do soberano em conservar o Estado. O ideal virtuoso se afasta daquele antigo já colocado; ao revés, enfatiza-se na pessoa do soberano em saber mobilizar suas atitudes ‘a exatidão da medida que supervenha no campo governamental valendo qualquer meio, até a morte se for para a manutenção do Estado e, mediatamente, ao bem comum.
Sob o mesmo respaldo, mais tarde, Hobbes justifica que a instabilidade do conviver humano deve ser erradicada, por um poder soberano, indivisível, uno e inalienável, que tenha o condão de evitar o sumo malus; mas que sobretudo, seja forte o suficiente de modo a evitar a anarquia para ele, a ameaça de prevalecer as condições objetivas (2) do que denomina Estado de natureza. Sua preocupação não é diretamente com o uso do poder e suas peculiaridades como Maquiavel, mas com o temor da escassez do poder, com a proeminência da insegurança.
Hobbes - tendo como meta o evitar do Estado da natureza, estágio hipotético onde os homens sendo iguais estão sob a volúpia similar de tudo adquirir a custa da morte generalizada - pretendendo a garantia da incolumidade da vida, da propriedade e do raio mínimo da liberdade humana, toma que o motivo da instabilidade tal se dá pela disparidade de opiniões entre os homens por essência dotados de agonística; e, em sendo assim, deve-se sanar tal ameaça através de uma ética moral que se atrele ao método rigoroso; científico, uma ética demonstrativa capacitada para o controlar o acaso, para evitar o mal; ao propósito, então, põe como solução, por sua vez, que todos os homens temerosos da privação da vida, propriedade e liberdade abdiquem de todo o seu poder pessoal, para a fabricação de uma instituição, de "um relógio", soberano, um poder capaz, de manter a "engrenagem" egoística humana em níveis mínimos de seguridade e estabilidade – o homem é anti-social, o Estado, o leviatã, é o único soberano capaz de trazer paz, desde que partidário de um sistema coercitivo eficaz, qual seja, o direito enquanto instrumento coercitivo (o modelo purista, neo-kantiano que conhece-se pela teoria de Kelsen).
Rosseau - contrapondo-se à lógica de Hobbes no que tange ao Estado de instabilidade do Estado de natureza, bem como a natureza vil do ser humano - afirma que a condição agonística da experiência humana verificada por aquele (Hobbes), é fruto de uma degeneração causada pela agressividade da divisão do trabalho e dos valores atribuídos a propriedade privada instigados no seio social – o intento de Rosseau não era tanto afirmar a bondade do homem, porém negar sua perversidade intrínseca.
A solução descrita por Rosseau em contradição de Hobbes, é o resgate pela razão peculiar a cada indivíduo temperada pela natureza de um "Estado de Natureza" bom e feliz, através da convocação da voz anterior da consciência que, expressada num senso moral espontâneo, rume-se para um pacto comum, viabilizado pela vontade coletiva, em prol de uma soberania política que nada mais seja que o exercício desta vontade coletiva, uma vontade em ação.
A idéia que subjaz tal pacto é aquela na qual o homem é perceptível; é dotado da característica da perfectibilidade, podendo através do artifício político, justificado numa vontade geral, da qual ele é fragmento atuante, edificar uma política que se molde pelos ditames do interesse próprio harmonizado com o interesse comum. A legitimação do poder é decorrente do "material" dado pelo "povo", e não pela legalidade de um soberano.Enfim, a solução é a virtude cívica, um homem capaz de guiar sua ética a um ideal dado pelo e em prol do bem comum – logo, a constituição de um direito positivista, meramente purista, não serviria aos propósitos do modelo rousseauniano.
As teorias políticas, superficialmente descritas, demonstram que o conceito e finalidade de política se adaptam às exigências sociológicas e acuidades próprias de cada tempo – fenômeno social que repercute no fenômeno jurídico, por óbvio. Dentre as inúmeras relevâncias para o tempo contemporâneo, a incursão destas no campo jurídico-filosófico são imensuráveis e, definem a própria teorização jurídica, uma vez que esta floresce das necessidades, interesses e poderes do fenômeno social, político e econômico, ainda que se apresente – tal como no purismo jurídico – (falsamente) alheia a estas conjunturas que redundam em normas programáticas.
Os contratualistas Hobbes e Rosseau, bem como, o precursor da ciência política, Maquiavel tiveram seus pensamentos aplicados na estrutura das convenções modernas e sobretudo, foram responsáveis pelo projeto político sob o qual se vive hoje. A concepção de direito natural, no que toca a um código de preceitos dados ao homem pela razão de assim ser, justificam os limites do império das legislações normativas.
O jusnaturalismo moderno foi revitalizado na Constituição Americana de 1776, na Revolução Francesa de 1789 e, em 1948, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, como um conteúdo que norteia a todo homem. A igualdade abstrata é universal do direito à vida, amplo à propriedade e à locomoção efetiva do ir e vir e, pressuposto para a igualdade substancial, que dada a conjuntura das necessidades, desdobrou-se na positivação de direitos sociais e econômicos – um elastério aos direitos civis e políticos.
Repisando, Aristóteles participa da concepção de direito atual, também, no que toca à validade, à justa do conteúdo normativo aplicado à solução da lide in concretu (justiça comutativa), bem como do dominium econômico do crescimento e desenvolvimento da nação pelo conceito da justiça distributiva.
Maquiavel e sua teorização, por sua vez, provocou a separação da ética privada e pública uma inédita regulação que deu a consagração administrativa de direitos públicos e privados e, agora, a criação de direitos difusos, como categoria intermediária. Frisa-se, este último uma nota na idéia de que o público e o privado não comportam limitações tão precisas e definitivas.
De tudo, a lógica da política clássica toma o ser do homem comutado ao abrir, permitido pelo Logos e, orientado por um ideal paideia ético em prol da conservação do todo – o acaso existe, e é impossível de ser dominado. A lógica da política moderna toma o ser do homem distanciado de seu agir, este é incapaz de ser racional por si, de se auto-discernir, então, cabe a política como instituição extroversa, fazer " treinar" a individualidade. Para a primeira um direito atrelado à justiça, ética de convicção. Para a segunda, um direito atrelado ao resultado, quase que divorciado da justiça, ética da contingência.
Sem mais, a racionalidade antiga e a racionalidade moderna perturbam a teoria e prática contemporânea no que toca a investigar e talvez concluir o que é o ser humano atual e sua razão de ser e existir – e, logo, também a teorização jurídica. Qual é o perfil do direito positivo e sua ciência atual?.
Respostas prontas são impossíveis e, ante a contingência e valores plurais e divergentes tornam-se passíveis de rapidamente estarem diferidas e ser facilmente aglutinadas. Tarefa difícil é teorizar, sobretudo juridicamente, pois que todos os paradigmas já foram testados, com pouco êxito.
Um "re-começo" – como alude os "pós-modernos", reformando ou revolucionando - poderia, em análise rudimentar, partir para a assertiva aristotélica, qual seja o acaso é regra e não exceção. Os homens não devem seguir cânones, mas criarem seus próprios através da análise, crítica e reflexão. Mas será ao homem possível tal investigação, já que é produto moral da racionalidade vazia e superficial do Império dos valores atuais? Termina-se com mais uma aporia e com o impulso de que especular é sempre o prefácio para o reconstruir de teorias que expliquem a realidade, sobretudo a jurídica.

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